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Marçal de Souza Tupã’i

memorial virtual

Jornal Mensageiro, nº 23, p. 4-5. Disponível no Armazém Memória.

 

Da mesma forma que a sociedade civil se manifesta, é essencial a iniciativa e responsabilização do Estado. Hoje, temos um passo importante nesse sentido: o pedido de Anistia Política para Marçal de Souza requerido pelo Ministério Público Federal. No processo anexado a seguir, pode-se ler a argumentação do procurador Marco Antonio Delfino para embasar o pedido de anistia, reparação aos familiares e “implementação de medidas que viabilizem uma comunicação efetiva e capaz de disseminar a trajetória de Marçal de Souza e sua luta frente a defesa dos direitos fundamentais dos povos originários.”

Há quarenta anos, no dia 25 de novembro de 1983, Marçal de Souza Tupã’i foi assassinado em sua casa, na aldeia Campestre, Mato Grosso do Sul. Até hoje, os culpados pelo crime não foram responsabilizados.

Ao longo de seus 62 anos de vida, Marçal, do povo Guarani Ñandeva, fez importantíssimas contribuições para a luta dos povos indígenas, sendo um dos protagonistas da União das Nações Indígenas (UNI).

Relembrar sua história é umas das formas de olharmos criticamente para o presente. Tantas das bandeiras levantadas por Marçal, como a defesa dos territórios e culturas indígenas diante da expansão da monocultura e do avanço do capitalismo predatório no interior do Brasil, seguem hoje muito atuais. Essa permanência da violência e das violações de direitos humanos contra os povos indígenas deixa ainda mais nítidas as estruturas por trás do assassinato. O caso de Marçal está longe de ser isolado. É, isso sim, retrato da organização fundiária brasileira, baseada na violenta expansão capitalista de produção em grandes latifúndios, como vemos no Mato Grosso do Sul, com a produção de agropecuária extensiva, antagônica ao modo de vida indígena e ao respeito à natureza e às práticas ancestrais, comunitárias e pautadas pelo Bem Viver.

O memorial virtual para Marçal de Souza Tupã’i está em construção e continuará assim com o passar do tempo, tendo em vista que a história segue a nos mostrar diariamente as potências de Marçal no presente. No marco dos 40 anos de seu assassinato, um evento público em sua homenagem é organizado pelo CIMI, Aty Guasu Guarani Kaiowá, UFGD e MPF. Fazemos aqui o convite para o envio de contribuições que apoiem na expansão desse memorial.

Requerimento de anistia política para Marçal de Souza, disponível para leitura aqui.

Trechos de Marçal em Terra dos Índios, 1979 (direção de Zelito Viana)

CONTEXTO HISTÓRICO

 

Boa parte da vida e luta de Marçal Tupã’i ocorreu durante a ditadura militar, regime marcado por inúmeras violações aos direitos humanos. Nesse período, foram empregadas práticas de expansão da ocupação territorial por meio do desenvolvimentismo técnico forçado, a partir de táticas violentas contra os povos indígenas e a natureza.

O Estado brasileiro não apenas se omitiu mas foi cúmplice e fomentou tais práticas por meio de instituições como o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e Funai, além de dar suporte a terceiros do setor privado no esbulho da terra e genocídio indígena. A tutela ainda era uma postura amparada pela lei, com a ideia de absorver os povos indígenas ao modo de vida dos brancos, e os julgando incapazes de possuir autonomia. Nesse cenário, Marçal incomodava os poderosos, com seus discursos afiados e postura combativa. Marçal foi um líder que não se curvou. Nem por ameaças ou tentativas de suborno desistiu de seus ideais ou traiu seu povo.

Documento extraído do acervo do Armazém Memória.

Falar do assassinato de Marçal é lembrar de tais crimes e traumas, para que exijamos que o Estado não siga repetindo as violações do passado. É necessário e urgente um processo de responsabilização e reparação dos crimes cometidos contra os povos indígenas, especialmente no período da ditadura militar.

40 anos depois da interrupção forçada de sua vida e sua trajetória de resistência, vemos como a postura de Marçal, ao se projetar numa vida de militância e política, abriu caminhos para a ocupação cada vez maior dos povos indígenas nos espaços da política brasileira e na tomada das decisões que lhe dizem respeito. Também fruto disso, hoje, pela primeira vez, vemos a Funai sendo coordenada por uma mulher indígena.

Foto: Acervo CDR/UFGD. Extraído da plataforma “À procura de Marçal”.

“Mas para onde nós vamos? Neste século, chegamos ao fim da picada. Não temos muita alternativa. Não temos mais mata para fugir, nem floresta para nos proteger do perigo, da perseguição, do massacre. É como se estivéssemos à beira de um grande rio, sem canoa, sem ter como atravessar. Além de sermos os donos primitivos e legítimos desta terra, temos a lei feita pelos brancos para nos proteger. Mas essa lei não está funcionando. É isso que temos que cobrar do governo que nos deixou no abandono. A lei maior é a natureza… Infelizmente, a natureza é desrespeitada pela lei dos homens. Estou falando do Rio de Janeiro. Apesar de ter visto tantas coisas bonitas feitas pelo branco, fico triste porque meu povo viveu nesta terra antigamente. Aqui começou o sofrimento de nossa gente. Nós temos grandes amigos aqui, alguns antropólogos, não todos. Muitos só querem se especializar, lecionar… Foram na aldeia, tiraram tudo que nos é sagrado e nos deixaram só com o lixo… Tenho uma tristeza em minha vida: o fato de ser bastante idoso. Eu queria ser um moço bem novo, com todas as forças que tive em minha juventude. Mas gostaria de ter tido essa consciência, esse amor que tenho em meu coração, agora, nesta idade avançada. Mas levantarão outros que terão o mesmo idealismo, que continuarão o trabalho que hoje nós começamos. Isso eu deixo pra vocês!

Marçal de Souza Tupã’i em debate com Darcy Ribeiro e D. Tomás Balduíno, promovido pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI), do Rio de Janeiro. Trecho extraído do livro Marçal Guarani: a voz que não pode ser esquecida, de Benedito Prezia.

A repercussão do assassinato de Marçal

Na época, a União Nacional Indígena (UNI) escreveu um manifesto sobre o assassinato de Marçal, em que denuncia os interesses territoriais e o descaso do poder público. “A família de Marçal informou que há 20 dias este recebeu visita de um indivíduo que oferecia cinco milhões de cruzeiros para que ele convencesse um grupo de Índios Caiowá da aldeia Piracuã, município de Bela Vista, MS, para que abandonassem suas terras” O documento foi enviado para a OAB, o governo do estado do MS e a presidência da República.

Diversos outros documentos e reportagens foram produzidos a respeito do assassinato de Marçal, como se verifica na listagem ao lado:

Os indígenas em Dourados: repetição das violências

“A terra indígena de Dourados, com apenas 3475 hectares, abriga mais de 11 mil pessoas de três etnias: guarani, caiouá e terena. Um assentamento do Incra com essas dimensões não comportaria mais do que 200 pessoas. Sem terra agricultável, as crianças pequenas têm sido as novas vítimas. Nos últimos meses, 16 delas morreram de desnutrição, apesar da ajuda oficial. Em 2005, 27% das crianças guaranis e caiouás de até 5 anos sofriam de desnutrição. Esse problema é antigo, pois em 1999 a taxa de mortalidade infantil era de 140 por mil nascidos vivos. Em 2005, esse número caiu para 64 – porém, quase três vezes mais do que a média nacional, que é de 24 por mil.” Trecho extraído do livro Marçal Guarani: a voz que não pode ser esquecida, de Benedito Prezia, p. 87.

Como vemos no trecho acima, mesmo após a redemocratização, uma estrutura violenta se mantém. Em 2021, ao menos 7 casas de reza foram queimadas no Mato Grosso do Sul, e neste ano de 2023 dois indígenas morreram carbonizados em um incêndio criminoso. O estado do MS tem notáveis ocorrências de violência contra os povos indígenas, intolerância religiosa e esbulho da terra.

O abafamento do assassinato de Marçal no estado é um reflexo disso, como nos aponta Prezia, que fala sobre a invisibilidade como uma segunda morte: “Se no Brasil e no mundo a morte de Marçal despertou revolta e indignação, no Mato Grosso do Sul a tática da classe dominante foi de ‘abafamento’. Como disse na época o mesmo Ricardo Brandão, criava-se, no Estado e nas esferas federais, uma cortina de fumaça, ‘uma cumplicidade de silêncio para que o caso não fosse solucionado’. Era a ‘segunda morte’ de Marçal que estava em curso. Várias circunstâncias contribuíram para isso, chegando a uma descarada omissão dos poderes Executivo e Judiciário do Estado sul-mato-grossense.” (página 79)

Ainda sobre a omissão do Estado, Prezia narra a forma como o judiciário sul-mato-grossense tratou a questão após terem encontrado com Rômulo Gamarra – funcionário do fazendeiro Líbero Monteiro de Lima, que tinha interesses diretos nas terras indígenas da região – o revólver com o mesmo serial da bala que matou Marçal.

Seis meses depois do assassinato, foi expedida a ordem de prisão de Gamarra, tendo ficado na cadeia por apenas 60 dias, sendo solto graças a um habeas corpus impetrado pelo Dr. René Siufi, um dos melhores e mais caros advogados de Campo Grande. Perguntava-se, na época: como um simples capataz de fazenda poderia ter dinheiro para contratar um dos melhores criminalistas do Estado? Por um bom tempo, o processo rodou, indo da esfera estadual para a federal e vice-versa, mostrando que o problema de competência judicial era um fator importante, pois a Justiça Federal deveria mostrar-se mais isenta e imparcial” (p. 81).

Esses grandes latifundiários seguem com as mesmas práticas de repetição das violências do passado, mesmo que as leis do presente tenham se alterado com a constituição de 1988. Por isso, o Estado, se disposto a reparar seus próprios erros com os povos indígenas, tem a responsabilidade de demarcar as terras e garantir que as leis sejam cumpridas e ampliadas para os povos indígenas, independentemente do poder político e econômico dos criminosos que perpetuam as estruturas de violência.

“Não podemos viver amedrontados. Não devem temer o medo. Se nos deixarmos vencer pelo medo, eles poderão nos derrotar. Façam vocês o que nós fazemos: unam-se e façam-se fortes! A terra nos pertence!”

Mensagem de Marçal aos guaranis da Argentina em outubro de 1982 – Trecho extraído do livro Marçal Guarani: a voz que não pode ser esquecida, de Benedito Prezia

ESPECIAIS

Armazém Memória

acervo

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

exposição

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

retratos da violência

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

conflitos territoriais

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

conflitos territoriais

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

exposição

UNI - União das Nações Indígenas

mostra de cinema

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

retratos da violência

Exposição: Respeito ou Repetição?

acervo

Exposição: Respeito ou Repetição?

acervo

conflitos territoriais

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

retratos da violência

Mostra: O Índio Imaginado (1992)

mostra de cinema

Exposição: Respeito ou Repetição?

acervo

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

acervo

Mostra: O Índio Imaginado (1992)

mostra de cinema

conflitos territoriais

UNI - União das Nações Indígenas

exposição

Genocídio Indígena: Violência Continuada

retratos da violência

Exposição: Respeito ou Repetição?

exposição

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

acervo

Pesquisa e redação: Julio Zelic

Edição de textos, revisão e diagramação: Helena Zelic