Ẽg Ẽmã, Ẽg Krẽ Ga
(nossa terra, nossa herança)
Arrendamento ilegal de terras indígenas
Crianças Kaingáng trabalhando. Terra Indígena Ligeiro/RS, 1944. Fonte: Acervo do Museu do Índio/Funai.
O especial “Ẽg Ẽmã, Ẽg Krẽ Ga (nossa terra, nossa herança): arrendamento ilegal de terras indígenas” faz parte da série “Território e Resistência” do Centro de Referência Virtual Indígena do Armazém Memória. A série retrata, em páginas especiais, a história de luta dos povos indígenas em defesa das terras em que vivem, reunindo documentos destacados do Armazém Memória e outras fontes, e abrindo uma janela para que olhemos um conflito histórico e permanente entre a lógica de exploração da sociedade dominante e a resistência dos povos indígenas. A pesquisa documental nos ajuda a compreender o presente em que vivemos, entender os mecanismos seculares de opressão e desrespeito contra os povos indígenas, bem como a justeza da luta por demarcação de suas terras e respeito a seus direitos constitucionais.
Fernanda Kaingáng e Susana Kaingáng, autoras deste especial junto com Marcelo Zelic, resgatam a história de seu povo, trazendo à luz documentos que comprovam os ataques sofridos pelo povo Kaingáng desde os anos de 1960 até os dias de hoje.
Demarcar é reparar! Que cesse a violência do Estado contra os povos indígenas e que estes possam viver suas culturas e existências em tranquilidade, vida plena e respeito à diversidade e aos direitos indígenas. Ocupar a história, recontar o Brasil, promover os direitos humanos e a efetivação da justiça de transição aos povos indígenas: isso é o que buscamos.
Disseram-me que o pôsto cobra uma percentagem sobre a produção com o arrendamento. Existe também arrendamento em dinheiro. No meu ponto de vista, todos êsses arrendamentos devem ser considerados prejudiciais aos índios, porque dilapidam a riqueza natural do território índio, não só em relação à madeira, mas também em relação ao solo, tornando-o improdutivo.
(CPI de 1968 na Câmara dos Deputados sobre a situação dos remanescentes das “tribos dos índios do Brasil”.
Disponível aqui. WESTPHALEN, Moisés. CPI ALRS. 1968, p. 283-284)
HISTÓRICO
O avanço dos interesses econômicos sobre os territórios indígenas teve início por ocasião da invasão, em 1500. Para justificar juridicamente a expropriação dos territórios do Novo Mundo, habitados por povos indígenas desde tempos imemoriais, as monarquias europeias decretaram que as terras eram devolutas, res nullius, ou terras de ninguém. A desumanização dos povos indígenas para legalizar a expropriação de terras e a exploração de suas riquezas transformou povos com línguas, organização social, culturas distintas e soberania sobre seus territórios em “ninguém” na história. A resistência à remoção forçada por parte dos povos indígenas foi considerada insubordinação às coroas europeias e deu causa à escravização da população indígena por meio das “guerras justas”. (KAINGÁNG e KARAJÁ, 2023).
As práticas de extermínio dos povos indígenas, em nome do “progresso” e do “desenvolvimento” do país foram executadas por quatro séculos como política pública oficial do Governo Colonial, Imperial e se estendeu até o Brasil República, outorgando títulos de nobreza aos caçadores de indígenas, também conhecidos como bandeirantes no Sudeste, ou “bugreiros” no Sul do Brasil. Durante o período exterminacionista, verbas governamentais eram destinadas para o pagamento desses matadores de aluguel, comprovando que o Estado brasileiro promoveu intencionalmente crimes de lesa humanidade que resultaram no genocídio de centenas de povos indígenas, mediante o assassinato indiscriminado de povos inteiros. (BELFORT, 2006).
O Estado e a sociedade brasileiros jamais admitiram esses crimes e nenhum tipo de reparação pelas violações continuadas aos direitos dos povos indígenas foi feito até os dias atuais. Como resultado, não existem medidas adotadas para prevenir que a prática histórica da violência contra os povos indígenas continue se repetindo.
A despeito do reconhecimento dos direitos dos povos indígenas aos seus territórios na Constituição Federal, os interesses econômicos sobre a parcela do território nacional que são territórios indígenas demarcados ou em processo de demarcação avançam ameaçando a diversidade cultural e biológica do Brasil.
O processo de desterritorialização dos povos indígenas tem sua face contemporânea na exploração econômica dos territórios indígenas demarcados: seja ela a mineração, o desmatamento para comercialização de produtos madeireiros, a pecuária extensiva ou as monoculturas transgênicas que contaminam o solo, águas de superfície, lençóis freáticos e exterminam a diversidade biológica que ainda resta nesses territórios.
A prática ilegal de Arrendamento das Terras possui registros que datam da época da gestão das terras indígenas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), criado em 1910, e teve continuidade com a criação da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 1967.
Violação do usufruto exclusivo dos povos indígenas e violação ao patrimônio público
Representação de Moisés Westphalen denunciando a violação dos direitos territoriais dos Kaingáng, p. 104. Disponível aqui.
Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 1968. Disponível aqui.
Instauração da CPI de 1968 na Câmara dos Deputados sobre a situação dos remanescentes das “tribos dos índios do Brasil”.
Disponível aqui.
Ata da oitiva de Moisés Westphalen na CPI da ALRS. 20 de junho de 1967. Disponível aqui.
CPI 1968. Câmara dos Deputados. Moisés Westphalen descreve a situação da Terra Indígena Serrinha no município de Ronda Alta (RS), p. 282. Disponível aqui.
Em 1963, uma representação denunciando a expropriação dos territórios indígenas no estado do Rio Grande do Sul foi encaminhada à Procuradoria Geral da República pelo engenheiro agrônomo Moisés Westphalen. É triste constatar, após a leitura do documento, que a corrupção dos entes públicos e seus prepostos caminha de mãos dadas com a omissão daqueles a quem competiria a defesa dos direitos dos povos indígenas para apoiar o avanço e a expropriação dos interesses econômicos privados e públicos sobre os territórios indígenas.
Transcrevemos abaixo, alguns trechos da representação:
(…) Lamentavelmente, a 16/2/1962, o Executivo Estadual do Estado do Rio Grande do Sul, desdenhando as razões da recusa de outorga legislativa proposta sem êxito na Assembléia Legislativa, pelo projeto número 104/60 determinou a tomada e sub-divisão de terras dos índios localizadas no território estadual.
Coube o demérito da realização dos atos de colonização e venda das terras usurpadas à Secretaria da Agricultura e à comissão das autoridades do S.P.I.
(…) Tais atos delituosos incorrem nas cominações de todas as leis que regem a proteção e assistência aos índios. Significam a negação do direito e o predomínio da fraude (…)
Sim, eis o que se ofereceu aos índios. As consequências da espoliação dos índios são de enorme repercussão na família indígena, que terá seus filhos oprimidos e esbulhados, a vagar errantes, miseráveis maltrapilhos, mendicantes, em torno das cidades dos civilizados até o extermínio total.
Não! Não podemos assistir o desenrolar de tão funestas consequências! O acêrvo cívico e moral dos brasileiros não o permitirá!
A lei e a sã moral exigirão os justos reparos a tais desmandos, que vão além dos erros – frutos da ignorância e da incompreensão.
A rápida e cavilosa ação empregada na usurpação e colonização das terras dos índios é um agravante de abuso de autoridade praticada pelas autoridades estaduais.
A estabilidade das instituições está a indicar que é urgente uma ação poderosa a retomar o usurpado e punir o delito, caso contrário toda noção de ordem e todo respeito ao direito sumirão no despotismo. O S.P.I. tinha poderes legais para impedir a espoliação dos índios até recorrendo às forças armadas. Não cumpriu as obrigações regimentais, nem usou da faculdade que lhe foram outorgadas para apelar à justiça e às autoridades. Exonerou-se de suas responsabilidades.
Mas, quem se animaria a fazer respeitar a Lei, quando o infrator é o Governo do Estado do Rio Grande do Sul?!
Ao S.P.I caberia a exclusividade das iniciativas em favor dos índios, segundo o seu Regimento.
Porém, quando se lesa dispositivos constitucionais e a legislação civil, essa exclusividade cessa, transferindo-se a defesa da ordem e da lei a outros poderes públicos, principalmente quando falece o direito pelo não exercício de uma faculdade, de um mandato outorgado legalmente.
A urgência das medidas reparatórias é óbvia, pois tendo o Govêrno Estadual, vendido as terras dos índios, com as riquezas florestais aí existentes, estas vão sendo consumidas irreparavelmente.
Os poderes públicos federais têm todos os recursos judiciários e policiais para promover a imediata retomada do patrimônio dos índios e as justas retificações que estão a exigir a situação do indígena no Rio Grande do Sul.
(Comissão Parlamentar de Inquérito da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, 1967. p. 104-105. Destaque nosso)
A denúncia era comprovada pelos documentos do Instituto Gaúcho de Reforma Agrária (IGRA) demonstrando o papel do estado gaúcho na desterritorialização do povo indígena Kaingáng. A representação foi encaminhada à Procuradoria do Estado do Rio Grande do Sul tendo sido instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, com o objetivo de apurar a situação dos postos indígenas do estado, como eram denominados os territórios indígenas na época.
O autor da representação foi ouvido em 1967, expressando indignação acerca da omissão das autoridades federais e estaduais que colaboraram com a expropriação das terras indígenas no estado do Rio Grande do Sul, bem como com a dilapidação do patrimônio extraído desses territórios, a exemplo dos pinheirais de araucárias.
A advogada e pesquisadora indígena Kaingáng Susana Fakój tece uma reflexão sobre a omissão histórica dos órgãos indigenistas oficiais em promover a defesa dos territórios e dos direitos dos povos indígenas em oposição aos princípios consagrados pela legislação nacional e pelos instrumentos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário:
A realidade vivenciada nos territórios Kaingáng na região Sul do Brasil é um reflexo de políticas estatais que têm como pano de fundo a exploração dos recursos naturais e ambientais presentes nesses locais; a serviço do desmatamento e da implantação de madeireiras, de monoculturas e “política dos panelões” − como era conhecido o regime de trabalho utilizando mão de obra indígena escrava −; do arrendamento ilegal das terras indígenas para o agronegócio, no qual, inicialmente, o SPI e a Funai eram os beneficiários dos lucros auferidos e, posteriormente, lideranças indígenas passaram a locupletar-se indevidamente com recursos que pertencem à coletividade. Políticas que apenas ao longe vislumbram as aspirações do povo Kaingáng e os seus projetos de presente e futuro e de bem viver, embora estes sejam amplamente reconhecidos e assegurados em instrumentos internacionais e nacionais de direitos humanos, nos quais se dispõe sobre autodeterminação e autonomia dos povos indígenas. (BELFORT, 2023, p. 152).
A exploração econômica das terras indígenas, sem que os povos indígenas recebessem qualquer benefício, também foi objeto de investigação na Comissão Parlamentar de Inquérito na Câmara dos Deputados, instaurada em 22 de outubro de 1968.
O depoimento do engenheiro Moisés Westphalen ao Presidente da CPI, em 1968, descreve o quadro de exploração das terras indígenas Kaingáng do Rio Grande do Sul denunciando a escandalosa dilapidação do patrimônio público que permanece inalterada pela omissão governamental até os dias atuais, o que demonstra a natureza continuada dos crimes contra o patrimônio que violam o direito exclusivo dos povos indígenas ao usufruto dos seus territórios.
Ao ser questionado sobre o destino da população de Serrinha, terra indígena situada no norte do Rio Grande do Sul, Westphalen responde que os indígenas foram deslocados para Nonoai para permitir a ação espoliativa do governo do estado do Rio Grande do Sul.
Palavras como “transferência”, “deslocamento” ou “remoção” significam que esses indígenas foram alvo de remoção forçada, praticada de forma truculenta e com execução daqueles que oferecessem resistência. A Terra Indígena Serrinha foi retomada por volta dos anos 2000 e embora não tenha sido homologada é uma área de conflitos intensos devido ao arrendamento das terras indígenas para o plantio de monoculturas transgênicas, o que é proibido pelas leis ambientais brasileiras. Entretanto, era comum que as autoridades federais atribuíssem os conflitos em terras indígenas a “disputas internas”, omitindo a causa dos conflitos, que são vultosos interesses econômicos externos.
Em plena ditadura militar, Andila Inácio, educadora do povo Kaingáng e servidora da Funai, escreveu uma carta ao presidente da República, o general Ernesto Geisel, denunciando a invasão de seu território e descrevendo o desespero de seu povo.
Andila foi ameaçada de demissão pela Funai, caso insistisse em continuar divulgando a realidade enfrentada pelo povo Kaingáng, mas denunciou a tentativa de silenciamento e a repercussão pública impediu o órgão indigenista de promover novas represálias para silenciar a professora Kaingáng.
Índia que denunciou dificuldades está proibida de falar. 21 de agosto de 1975. Disponível aqui.
Quantas vozes indígenas foram silenciadas por denunciar a ação ou a omissão dos órgãos públicos ante a exploração ilegal dos territórios indígenas sem que medidas efetivas tenham sido tomadas pelas autoridades brasileiras? Quantos líderes como Ângelo Kretã e Marçal Tupã tiveram seu sangue derramado porque aqueles que deveriam defender os direitos coletivos dos povos indígenas preferiram a inércia? Quantos servidores públicos foram responsabilizados por suas ações ou omissões que contribuíram para a dilapidação do patrimônio público? Esses crimes continuados, cometidos contra o patrimônio dos povos indígenas até os dias atuais, denominados por Marcelo Zelic como “crimes de tutela” permanecem impunes e as vítimas desses crimes permanecem sem qualquer espécie de reparação!
Que fim levou Andila Kaingáng? Após liderar a retomada da Terra Indígena Serrinha, a professora Andila, agora aposentada, se viu obrigada a sair da TI Serrinha para se manter com vida e seguir denunciando a truculência do agronegócio dentro dos territórios Kaingáng que pela desídia governamental foram transformados em terras sem lei, onde o direito à vida, à dignidade, à segurança, ao domicílio foram relativizados para dar lugar à naturalização da violência, à desigualdade social e a toda sorte de violações de direitos humanos
Folha da Manhã. ‘A Índia Caigangue Escreveu ao Presidente Pedindo Socorro’. 12 de agosto de 1975.
Disponível aqui.
A coragem da professora Andila inspirou muitas outras cartas de lideranças e denúncias sobre a violação dos direitos dos povos indígenas aos seus territórios:
Uma mulher Kaingáng escreve ao presidente. Disponível aqui.
Ao buscar a defesa dos seus direitos coletivos junto à Procuradoria da República em Passo Fundo (RS) questionando o descumprimento dos Termos de Ajustamentos de Conduta (TAC) assinados pelo Ministério Público Federal juntamente com a Funai permitindo o arrendamento das terras para cooperativas de fachada, os Kaingáng tiveram por resposta o silêncio e a inércia da Funai, do MPF, somados à morosidade da Justiça Federal que negou o pedido tutelar do Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha, em abril de 2021, na Ação indenizatória 5000850-68.2021.4.04.7118-RS protocolada na Vara da Justiça Federal em Carazinho, sem que a prática ilegal do arrendamento tenha sido proibida até o presente momento.
O último áudio do Presidente do Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha, Dorvalino Fortes, antes de falecer devido a problemas cardíacos, descreve a violência com que são tratados aqueles que quebram a lei do silêncio imposta à população Kaingáng, com a conivência dos órgãos públicos. Dez famílias dos Fortes foram vítimas de remoção forçada, incluindo crianças e a matriarca da família Fortes, Terezinha Belini, que não suportou e faleceu em 2022, aguardando o retorno à Terra Indígena Serrinha.
“Será que não tem um meio de impedir isso aí e mandar o juiz segurar ou ligar pra Funai, o Ministério Público? A gente já mandou todos esses recados! A Funai sabe! O Ministério Público sabe e nada não tá acontecendo! Tá cada vez pra pior a proposta! Perseguição! Eles não estão olhando se a gente está doente ou não! … Por favor, dá um jeito que isso não aconteça, de eles tá carregando mudança, ponhando a mão na minha família…” (Dorvalino Fortes, comunicação verbal. Setembro de 2021)
Filhos de Dorvalino Fortes, Adilson Fortes foi vítima de agressões físicas e expulsão e Marciano Fortes teve sua casa destruída como retaliação por terem denunciado as irregularidades nos contratos de arrendamento.
Adilson Fortes. Fonte: Ação número 5003362-24.2021.4.04.7118. Justiça Federal Carazinho (RS)
Residência de Marciano Fortes. Abril de 2021.Crédito: Julie Zanatta. Fonte: Ação número 5003362-24.2021.4.04.7118. Justiça Federal Carazinho (RS)
Residência de Marciano Fortes. 25 de setembro de 2021. Fonte: Ação número 5003362-24.2021.4.04.7118. Justiça Federal Carazinho (RS)
Ante a sucessiva omissão das autoridades os Kaingáng realizam manifestações públicas na esperança de que alguma medida seja adotada:
Em 24 de setembro de 2021, o Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha promoveu um protesto em frente ao prédio do Ministério Público Federal de Passo Fundo/RS. A manifestação contou com a participação de dezenas de indígenas de diferentes famílias com o intuito de fazer uma manifestação pacífica em frente ao MPF pedindo providências antes que a situação de Serrinha se agrave e sangue Kaingáng seja derramado. Nenhuma providência é tomada para proteger os manifestantes. (…).
(Dossiê Kanhgág Ga. 2022, p. 40)
A manifestação foi amplamente divulgada pela mídia, como no Brasil de Fato RS, O Nacional e Sul21. A ausência de medidas urgentes resultou em duas mortes na Terra Indígena Serrinha, em outubro de 2021.
Já o outro caso criminal, a execução de dois indígenas pela liderança da Terra Indígena Serrinha em 16 de outubro de 2021 poderia ser interpretado como uma profecia autorrealizável, com uma violência previamente anunciada, mas na verdade foi um conjunto de fatos criminosos que, numa ordem cronológica, foi se agravando diante da omissão das autoridades públicas em cada denúncia apresentada, em cada pedido de ajuda feito e não atendido. (Dossiê Kanhgág Ga. 2022, p. 34)
A gestão territorial Kaingáng, tem sido alvo de discussões no âmbito da Procuradoria da República em 2013, e inclui a solicitação de estudo antropológico sobre o fenômeno do arrendamento, seus impactos sociais, políticos e econômicos, dentro e fora da Terra Indígena Serrinha, conforme memória da reunião realizada pela 6ª Câmara de Revisão e Coordenação. Entretanto, medidas efetivas para erradicar o arrendamento ilegal das terras indígenas não foram tomadas (Dossiê Kanhgág Ga. 2022, p.17).
Em face da inércia do MPF em Passo Fundo, foi proposta em abril de 2021 a ação 5000850-68.2021.4.04.7118-RS, pelo Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha, cujo teor constitui interesse público e apresenta provas da violação a direitos coletivos de um povo indígena, tanto que deu causa à uma ação civil pública posterior à propositura da ação. Em decorrência dessa ação o Conselho de Anciãos sofreu todo tipo de represália por parte da liderança indígena cooptada pelo agronegócio que enriquece, ilicitamente, não indígenas nos municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Engenho Velho e Constantina. Em face da complexidade, caráter regional e abrangência de competências, o judiciário federal da região Sul deliberou pela criação de um Grupo de Trabalho para tratar do Arrendamento de Terras Indígenas. O GT específico e representativo dos órgãos afetos ao tema nos três estados, tem por objetivo o tratamento interinstitucional do problema, do qual participam inicialmente, sem prejuízo de futura ampliação, os seguintes representantes: a Justiça Federal, Fundação Nacional do Índio/Funai, Advocacia-Geral da União/AGU, Ministério Público Federal/MPF, Polícia Federal, Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis/Ibama, Conselho Estadual dos Povos Indígenas/Cepi, Instituto de Inovação para o Desenvolvimento Rural Sustentável/Emater, divisão indígena da Secretaria da Agricultura do RS.
A morosidade dos poderes públicos, de suas instituições e prepostos tem resultado em novos conflitos e mortes de indígenas, sem que a lesão ao patrimônio público seja proibida e reparações pelos danos sejam adotadas. Novas gerações de profissionais indígenas tem ecoado na academia, e fora dela a denúncia da violação consentida pelo Estado dos direitos mais fundamentais dos povos indígenas:
Apesar da Carta de Andila ao Presidente da República ter sido escrita em 1975, os objetivos de sua luta continuam os mesmos até os dias atuais: o reconhecimento dos territórios indígenas e o usufruto coletivo, em face de uma visão colonizadora que se sobrepõe aos interesses de uma maioria indígena que vive pela estrada, com seus filhos, lutando por um pedaço de terra para assegurar sua sobrevivência. Esses são resquícios de um processo colonizador que brutalmente impõe seus valores e de um Estado omisso, negligente à dor e às reivindicações desses povos. Instituições e autoridades, ano após ano, não tomam providências, sob os mais diversos argumentos. Quando o Estado brasileiro vai ser convocado a oferecer reparação pelas violações a direitos humanos que tem perpetrado contra os povos indígenas? (BELFORT, 2023, p. 153).
A reflexão do engenheiro Moisés Westphalen em seu depoimento à CPI da ALRS em 1967 pode ser replicada para os dias atuais: Serrinha é um exemplo da incúria e do despreparo de todos que atenderam o problema indígena no Rio Grande do Sul. Infelizmente não se trata de uma única terra indígena, nem de um povo esquecido no Sul e Sudeste do Brasil. Os Kaingáng permanecem aguardando que os poderes públicos federais empreguem todos os recursos judiciários, executivos e policiais para assegurar seus direitos territoriais, na esperança de que o protagonismo indígena na Funai e no Ministério dos Povos Indígenas possam repercutir na realidade triste de violência e violação de direitos territoriais do povo Kaingáng. A luta por reparação a cada povo indígena pelos crimes perpetrados contra os nossos povos e nossos territórios exige medidas urgentes! Um projeto de futuro para a diversidade cultural e ambiental requer a criação de mecanismos de não repetição que impeçam a violação do usufruto exclusivo de cada povo indígena aos seus territórios, por interesses econômicos externos às nossas culturas.
Impactos do arrendamento para a saúde humana
e a diversidade biológica em territórios indígenas
O Dossiê Kanhgág Ga – Terra Kaingáng enviado às autoridades brasileiras em 2022 reúne informações que comprovam os crimes de apropriação privada de patrimônio público e alerta para os crimes ambientais decorrentes do plantio de monoculturas transgênicas em terras indígenas, como a contaminação do solo e águas por defensivos agrícolas nos territórios indígenas, bem como os riscos para a saúde humana que jamais foram informados a esse povo pelas autoridades federais que têm autorizado a continuidade do arrendamento das terras indígenas.
O presente documento foi elaborado por profissionais de diferentes áreas do saber a pedido do Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha e reúne um conjunto de elementos probatórios, documentos históricos, ações judiciais e notícias veiculadas pela mídia que demonstram a apropriação privada de patrimônio público iniciada com a exploração de recursos naturais (extração ilegal de madeira) destruindo os ecossistemas naturais de maneira a comprometer as formas tradicionais de subsistência do povo Kaingáng e posteriormente substituída pelo plantio de monoculturas como soja e trigo com uso de sementes transgênicas e defensivos agrícolas cancerígenos, em larga escala, promovendo a concentração de terras para o arrendamento ou “parcerias agrícolas” implantados pela FUNAI e mantidos até os dias atuais, via Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), sem o devido processo de esclarecimento às comunidades indígenas sobre os riscos para a saúde humana pela constante exposição a substâncias utilizadas nas monoculturas, a exemplo do glifosato.
Produção Agrícola e Uso de Transgênicos e Herbicidas nas Terras Indígenas Arrendadas no Estado do RS.
Nos arrendamentos de Terras Indígenas do RS predomina quase exclusivamente a produção de soja, milho e um pouco de trigo. Esta monocultura é completamente estranha à tradição Kaingang. Ao invés dela ajudar na preservação da cultura tradicional, ela desorganiza a vida nas comunidades que ficam completamente alienadas do processo de produção agrícola. Por si só isso já representa um grave problema para os Povos Originários. Mas o que é ainda mais grave é o modo como é feita essa produção, que reproduz o modelo do grande agronegócio que utiliza tecnologias desconhecidas dos Povos Indígenas. No RS a maior parte da produção de soja e milho é feita com o uso de sementes transgênicas que possuem o gene RR (Roundup Ready), que torna as plantas de soja ou milho resistentes ao glifosato, e tudo indica que estas tecnologias também são usadas nas plantações das Terras Indígenas arrendadas. De qualquer maneira, mesmo se a produção nestas áreas está sendo feita com sementes convencionais, o uso de outros herbicidas, fungicidas e inseticidas representa também um risco muito grande para as comunidades indígenas que moram nos entornos das plantações. Mas o mais provável mesmo é que ocorra a plantação com sementes modificadas geneticamente.
(…) Como é do conhecimento das autoridades, em caso de comprovação desse fato, já fica caracterizado um delito, pois a legislação proíbe a plantação de transgênicos em Terras Indígenas: LEI Nº 11.460, DE 21 DE MARÇO DE 2007. Art. 1o Ficam vedados a pesquisa e o cultivo de organismos geneticamente modificados nas terras indígenas e áreas de unidades de conservação, exceto nas Áreas de Proteção Ambiental.
Na promulgação desta lei a preocupação maior era com os riscos e dúvidas sobre as possibilidades de organismos geneticamente modificados se espalharem em reservas florestais, colocando em risco a biodiversidade vegetal. Nesse período os riscos do uso do glifosato não eram muito conhecidos. Mas de 2007 para cá, pesquisas científicas muito bem conduzidas provocaram mudanças drásticas em relação a biossegurança do glifosato. Em 2015 a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) da Organização Mundial de Saúde, mudou a classificação do glifosato de “possivelmente carcinogênico” para “provavelmente carcinogênico”. (DOSSIÊ, 2022).
Arrendamento ilegal de terras indígenas e invisibilidade
Não é a falta de visibilidade que mantém a prática do arrendamento. Tampouco é a ausência de denúncias de corrupção pública e privada, amplamente anunciadas e denunciadas na imprensa e na mídia:
Isso é tradição colonial no Brasil. Sempre os territórios indígenas foram aproveitados como fonte de renda pra sociedade colonial e, posteriormente, para os brasileiros ao longo do século XIX e no século XX, mesmo tendo criado o Serviço de Índios que prestou inestimáveis serviços … mas na medida em que ele se organizou e que passou a demarcar territórios indígenas ele entrou em conflito com as frentes de expansão e resolveram esses conflitos cedendo os recursos naturais dos territórios indígenas pra exploração de terceiros, dessas frentes. E surgiu essa figura do arrendamento, com a desculpa de que os recursos financeiros obtidos desse arrendamento, fosse de exploração de recursos naturais, fosse do território (partes do território) para plantação e isso encorpasse o orçamento minguado do Serviço do Índio. Essa prática se instalou no Serviço do Índio: foi uma das grandes razões dele ter sido extinto, porque favorecia a corrupção. Todo o sistema de arrendamento foi corrupto do início ao fim. (PENNA, 2020. Vídeo. 20’53”- 22’51”)
A rede Globo transmitiu na programação do Fantástico, em 05 de dezembro de 2021, uma reportagem sobre o esquema de arrendamento de 15 mil hectares nas terras indígenas Carreteiro, no município de Água Santa, na Aldeia Pinhalzinho, que integra a Terra Indígena Nonoai, município de Planalto (RS), na Terra Indígena Serrinha, nos municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Constantina e Engenho Velho e na Terra Indígena Ventarra, no município de Erebango (RS) mostrando a violência e a morte que impacta as comunidades indígenas como resultado direto da concentração de terras causada pelo arrendamento. A criação de cooperativas de fachada criadas para executar projetos de sustentabilidade que nunca saíram do papel é denunciada.
“O dinheiro fica nas mãos do cacique, enquanto isso o resto da população acaba ficando na miséria” corrobora o Procurador da República em Erechim (RS), Filipe Andrios Brasil Siviero. O delegado da Polícia Federal Sandro Luiz Bernardi afirma: “Há formação de milícias privadas nessas reservas. O cacique monta seu grupo armado pra defender o seu poder do grupo opositor. Praticamente 10 anos enfrentando conflitos indígenas na região. Já temos mais de 30 indígenas assassinados nesse período. Podemos dizer que a maioria dos casos é a disputa pela terra. É a disputa pelo dinheiro decorrente do arrendamento das terras indígenas“. (Dossiê Kanhgág Ga. 2022, p. 53).
O Relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) sobre a Violência contra Povos Indígenas publicado em 2022 passou a relatar o arrendamento como principal causa de conflitos nas terras indígenas da região Sul e descreve o caso da Terra Indígena Serrinha, além das Terras Indígenas Guarita, Ligeiro, Carreteiro, Ventarra.
A publicação ‘Povos Indígenas do Brasil 2017-2022’ do Instituto Socioambiental trata do arrendamento nas páginas 671 e 796 e inclui artigo de Juracilda Veiga “Do que sofrem os Kaingáng hoje: Arrendamentos e Racismo”.
O arrendamento não é, portanto, um problema recente, não se trata de um caso isolado, que envolve disputas internas inerentes à cultura Kaingáng, como apontam o Relatório Figueiredo, as CPI’s da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e da Câmara dos Deputados de 1968. A questão do arrendamento envolve muitas cifras que enriquecem o agronegócio e cooptam pessoas indígenas e não indígenas, instituições e servidores públicos. Os interesses que envolvem o arrendamento têm sido protegidos por uma bancada que é majoritária no Congresso Nacional e sua erradicação requer instituições fortes e atuantes na defesa intransigente dos direitos territoriais dos povos indígenas.
Impactos do arrendamento para a organização
social, cultura e espiritualidade Kaingáng
Que as terras indígenas produzam feijão em abundância em lugar de soja! Que nossos Caciques sejam escolhidos e mantidos por sua generosidade e benevolência, e não pela força das armas! Que a tirania de alguns dê lugar à prosperidade de todos nas nossas terras! (Fernanda Kaingáng)
A sociedade Kaingáng vivencia uma crise econômica, social e cultural ligada aos processos de desterritorialização que resultaram em redução das nossas terras, da alteração na divisão social do trabalho e das formas tradicionais de subsistência, condenadas ao desaparecimento pelo avanço crescente da exploração dos territórios indígenas e da biodiversidade neles existente para enriquecer ilicitamente o Estado e a sociedade brasileira.
A implantação das monoculturas no interior das terras indígenas, via arrendamento, enriquece o agronegócio e tem condenado ao desaparecimento a agricultura familiar de subsistência, causando, por sua vez, fome e dependência governamental de cestas básicas que fogem aos padrões nutricionais Kaingáng.
Há necessidade de produzir alimentos com qualidade e quantidade para suprir a exigência alimentar da comunidade indígena, revitalizando a diversidade dos alimentos tradicionais: milho, feijão, brotos de abóbora, mandioca brava, morango, amendoim, batata e batata doce, caruru, erva moura, serralha, urtigão, mentruz, caraguatá do banhado (EMILIANO, 2018, p. 219).
A manutenção da exploração das terras, antes coletivas e agora privatizadas para o arrendamento e a produção de soja é causa de concentração de renda e do agravamento do processo de pauperização da maior parte da população indígena, mediante a cooptação de Caciques e suas lideranças em prejuízo da coletividade da comunidade, levada a se submeter a condições precárias de trabalho nas agroindústrias da região ou nas colheitas de uva, maçã, cebola, fumo e alho.
No Rio Grande do Sul, há também opções de serviços ou trabalho (trabalho braçal, por exemplo) em empresas como Agrodanieli, no município de Tapejara; Perdigão, no município de Marau; Aurora, em Erechim. Essas três empresas atuam no ramo do abate de frango de corte. Além delas, há épocas de colheitas de maçã nas cidades de Vacaria e de Lagoa Vermelha. Para realizar o deslocamento até os abatedouros, existem meios de transportes específicos, diariamente, como ônibus; já para a colheita de maçã, os trabalhadores índios permanecem nos locais por semanas ou até por um mês, para só então retornarem à terra de origem, reverem seus familiares e, na sequência, retornarem ao trabalho de colheitas (EMILIANO, 2018, p. 229).
Durante a pandemia de Covid-19, a temporada de colheitas continuou a ser uma das poucas opções de geração de renda para os indígenas, onde o serviço ganhou proporções ainda piores diante dos riscos de contaminação da doença, à saúde e a vida, além dos abusos verbais e maus tratos praticados contra trabalhadores indígenas nestes locais como mostra o depoimento de Vanderlei Sales, colhido pela jornalista Sônia Kaingáng na Terra Indígena Serrinha em reportagem sobre busca por trabalho e renda na aldeia durante o período em 2021:
[…] o emprego tá difícil, não tem serviço por causa dessa pandemia […]. O trabalho era direto, sem ter dez ou quinze minutos de tempo, ia até às sete e meia da noite colhendo sem parar. Teve dias que trabalhamos direto, uns quinze dias, e ele disse que daria uma folga pra nós no sábado de manhã pra ficar em casa, que era no alojamento. Era dia da nossa folga e tinha caído uma parreira no chão e ele mandou ir. Pra eles lá, acho que índio não tem valor. Tinha vezes que chovia cinco dias direto e nós colhendo uva, sem parar, debaixo de chuva. Uns não aguentavam, por causa que não é qualquer um que colhe cinco dias debaixo de chuva. É muito difícil, ele chamava a gente até de bugre debaixo da parreira e tinha que levar numa boa por causa que eles eram donos do lugar e nós, apenas empregado. Ficamos isolados, da roça pra casa, da casa pra roça. Ele não dava descanso pra nós. (Vanderlei, em KAINGÁNG, 2021)
O território para o povo Kaingáng possui uma importância que não está relacionada ao seu valor mercadológico, mas à nossa cosmovisão e valores culturais que determinam um vínculo afetivo e espiritual que o indivíduo e a coletividade possuem com seu território, reconhecido no âmbito da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas:
Artigo 25. Os povos indígenas têm o direito de manter e de fortalecer sua própria relação espiritual com as terras, territórios, águas, mares costeiros e outros recursos que tradicionalmente possuam ou ocupem e utilizem, e de assumir as responsabilidades que a esse respeito incorrem em relação às gerações futuras. (NAÇÕES UNIDAS, 2021).
Os territórios Kaingáng permanecem sob ocupação de posseiros não-indígenas e a maior parte está sob a posse e usufruto de agricultores não-indígenas, sob a forma de arrendamento disfarçado de “parcerias agrícolas” sob o pretexto de implementar uma suposta transição que permitiria aos Kaingáng a compra de maquinários e insumos e que os favorecesse plantar autonomamente. A falta de políticas públicas de gestão ambiental e culturalmente adequadas somada à corrupção em larga escala envolvendo o arrendamento das terras indígenas estão entre as causas de confrontos nas comunidades das terras indígenas, devido à concentração de renda em mãos do cacique e suas lideranças enquanto a população indígena padece sem saneamento básico, habitações decentes e condições dignas de trabalho ameaçando a segurança alimentar e agravando a vulnerabilidade econômica e social do povo Kaingáng.
O arrendamento das terras indígenas é um flagelo criado pelo governo que coopta lideranças indígenas, desvirtua a organização social Kaingáng ao desencadear a concentração de terras, ampliar a desigualdade social e provocar conflitos internos, violência e mortes que afetam a cultura Kaingáng.
Depoimento de indígena Kaingáng sobre o arrendamento na Terra Indígena Guarita. Disponível aqui.
A devastação da diversidade biológica nos territórios Kaingáng provocou também o desequilíbrio e a destruição do estilo de vida tradicional que dependia dessa biodiversidade. A devastação biológica dos territórios somada à erosão cultural diante da imposição de valores e práticas externas teve impactos negativos na identidade cultural, na segurança alimentar, na alteração dos papéis desempenhados por homens e mulheres, na organização social, na autoestima, nos processos próprios de educar e aprender e também na espiritualidade Kaingáng. A diversidade de vida presente em nossos territórios é parte integrante da cosmologia e da espiritualidade Kaingáng: os processos de cura em casos de doença grave eram orientados por animais que aparecem em sonhos ao kujá como é denominado o pajé ou xamã na língua Kaingáng:
Cabe ainda destacar que na perspectiva cosmológica dos Kaingang os animais são percebidos como profundos conhecedores de aspectos que interessam aos humanos. Tal é o que se dá na relação entre jangrê e kuiã – ou xamã Kaingang – pois nos processos de cura este age orientado pelos saberes daquele. Nimuendajú afirma que em caso de doença grave, o sonho do xamã com um jaguar é decisivo, na medida em que este possui a capacidade de antecipar acontecimentos vindouros, assim, se sonha com este animal trazendo um pedaço de carne na boca e oferecendo ao doente, e este aceita é sinal de que obterá a cura, entretanto, se há recusa, este morrerá da doença, Afirma este mesmo autor que o jaguar pode mandar outro bicho trazer a carne, desde que este seja do “partido do jaguar”. (RAMOS, 2008, p. 92).
O sistema de leis internas do povo Kaingáng obedece à tradição oral e tem por base o diálogo e o aconselhamento entre as metades exogâmicas Kamẽ e Kanhru de maneira que se alguém da metade Kamẽ é levado ao conselho de lideranças por ter violado usos e costumes que representam as normas internas ele será acusado pelos seus pares da metade Kamẽ e defendido pela metade de seus cunhados, os Kanhru. Essa característica evidencia que o povo Kaingáng não se divide apenas em metades que guerreiam entre si, mas que se respeitam e se protegem mutuamente e tem no diálogo e no aconselhamento uma estratégia de persuasão e convencimento do indivíduo a sujeitar-se às normas de convivência ditadas pela tradição Kaingáng.
Práticas autoritárias não fazem parte do universo tradicional Kaingáng, desde a educação das crianças até a postura dos pã’i – as autoridades ou lideranças tradicionais devem ser vistas como um exemplo de conduta dentro da comunidade, de benevolência e preocupação com o bem-estar coletivo. A experiência e a sabedoria reverenciadas nos anciãos de cada comunidade os qualifica para compor o conselho de autoridades que atua em conjunto com um cacique dentro da organização social tradicional Kaingáng: “Um pã’i é como um pai pra comunidade”, afirma Valdir Mῖg Carvalho, liderança que integra o Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha (2021).
Existe uma organização social dentro de cada TI, assim como na sociedade em geral. Nesta organização, uma das autoridades mais importantes é o Cacique, que representa os membros da TI e atua: na mediação de conflitos, em busca de uma solução ou alternativa; na luta pelo bem de seu povo; na organização de festas e reuniões; na recepção a visitantes; no incentivo à preservação da cultura de seu povo; no cuidado e zelo pelas normas e regras internas. (EMILIANO, 2018, p. 229)
Um autêntico líder Kaingáng é, antes de tudo, um exemplo e uma inspiração para sua comunidade. Uma liderança tradicional genuinamente preocupada com o bem estar da coletividade sob sua liderança enfrenta desafios que vão desde os recursos necessários para a defesa dos direitos coletivos de seu povo até o risco de vida que o cacique corre se não compactuar com os vigorosos interesses econômicos que pressionam as terras indígenas, não apenas na região sul do Brasil.
Entretanto, o povo Kaingáng tem enfrentado problemas dentro de seus territórios, advindos de mais de um século de imposição de modelos de gestão das terras e recursos naturais, que incluíram trabalho escravo em benefício dos prepostos do governo brasileiro (FUNAI e SPI), práticas de punição e violência física e autoritarismo agravadas pelo regime militar durante a ditadura. Ao omitir que os povos indígenas foram vítimas de violações de direitos humanos durante a ditadura militar, a justiça de transição brasileira permanece negando aos povos indígenas o direito à reparação pelas violências sofridas e a não ser vítimas da repetição das mesmas violências. Essas influências externas aos usos, costumes e tradições Kaingáng deixaram um legado nefasto que pode ser verificado sob diversos aspectos no cotidiano das comunidades indígenas Kaingáng do Brasil meridional.
A violência praticada pelos prepostos do SPI e, posteriormente, pelos servidores da FUNAI foi internalizada pelos caciques da atualidade que, há algumas décadas atrás, eram meros cumpridores das ordens emanadas dos agentes públicos. As práticas de tortura e cárcere privado passaram a ser executadas sem direito à defesa e de maneira arbitrária.
É espantoso que existe na estrutura administrativa do País, repartição que haja descido a tão baixos padrões de decência. E que haja funcionários públicos, cuja bestialidade tenha atingido tais requintes de perversidade. Venderam-se crianças indefesas para servir aos instintos de indivíduos desumanos. Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos suplícios, a título de ministrar justiça.
Para mascarar a hediondez dêsses atos invocava-se a sentença de um capitão ou de uma polícia indígena, um e outro constituídos e manobrados por funcionários, que seguiam religiosamente a orientação e cumpriam cegamente as ordens. (BRASIL, Relatório Figueiredo. 1967, p. 2)
O líder tradicional Kaingáng não se reveste culturalmente de autoritarismo, mas sua autoridade lhe é outorgada voluntariamente pelo respeito que inspira à sua comunidade coletivamente representada por um conselho que o auxilia na tomada de decisões. Um fenômeno que se pôde observar como herança das práticas de violência e autoritarismo do SPI e, posteriormente da FUNAI, foi a criação da figura do cacique opressor de seus próprios pares, um cacique individualista, egoísta e tirano, que julga ter poder de vida e morte sobre os membros de sua comunidade e adota práticas de violência, uso de armas, tortura, cárcere privado e intimidação à semelhança do sistema colonizador que o cooptou para exercer, em seu lugar, a exploração do seu próprio povo. Essa substituição dos interesses coletivos em prol de benefícios individuais se reflete claramente na política de gestão dos territórios indígenas do Brasil meridional pelo agronegócio via arrendamento: o aluguel das terras indígenas para a produção ilegal de grãos transgênicos, como a soja, em detrimento da agricultura familiar de subsistência em desaparecimento nos nossos territórios tradicionais.
A evolução da legislação aplicável aos povos indígenas superou a visão ultrapassada da tutela de pessoas, na qual o SPI e depois a FUNAI exerciam o papel de tutores porque a legislação civil considerava os indígenas relativamente incapazes para praticar determinados atos da vida civil. Em nome da tutela orfanológica todo tipo de abuso foi cometido contra os povos indígenas: filhos foram arrancados dos braços de suas mães porque, supostamente, elas não tinham capacidade civil para criá-los e foram submetidos a todo tipo de tratamento cruel e desumano por seus tutores governamentais, os crimes de tutela, expressão cunhada por Marcelo Zelic para denominar os crimes cometidos por ação e omissão dos prepostos do estado tutor contra os povos indígenas que tinha por dever proteger e cujo patrimônio que tinha por dever zelar.
A superação da negação da capacidade civil dos cidadãos indígenas deriva do reconhecimento no artigo 232 da Constituição Federal de 1988 do direito de defender em juízo os seus direitos individualmente ou coletivamente, por meio de suas organizações. Não é possível que um indivíduo sem capacidade civil, exerça capacidade processual, logo a Carta Magna reconhece aos indígenas e suas coletividades sua plena capacidade civil e processual, sem mencionar a necessidade de representação dos cidadãos indígenas e suas coletividades por um tutor que exerça o papel de substituto processual. A tutela de bens (como as terras indígenas, que pertencem à União) é realizada pelo Ministério Público Federal, mas não interfere no direito à autonomia, ao autogoverno que advém da livre determinação juridicamente assegurada aos povos indígenas em nível nacional e internacional, nos termos da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas:
Artigo 3. Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
Artigo 4. Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas. (NAÇÕES UNIDAS in SILVA, 2008, p. 27).
Assim, o direito à autodeterminação ou livre determinação é incompatível com o instituto da tutela de pessoas que prevalecia antes do advento da Constituição Federal de 1988. A interferência governamental ou de instituições alheias às organizações sociais tradicionais de um povo indígena em suas questões internas fere o direito à livre determinação e a autonomia das organizações sociais que integram o texto do caput do artigo 231 da Carta Constitucional Brasileira, no capítulo consagrado aos índios:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. (BRASIL, 1988, in SILVA p. 44).
A abertura dos territórios indígenas aos empreendimentos econômicos consiste na continuidade das políticas de expropriação das terras indígenas ao desvirtuar o uso coletivo da terra e cooptar lideranças Kaingáng, em prol das elites econômicas do agronegócio. O arrendamento das terras indígenas Kaingáng tem promovido a privatização do usufruto exclusivo da terra pelos povos indígenas, constitucionalmente reconhecido e cotidianamente violado, agravando a pauperização das comunidades indígenas nas quais o arrendamento é praticado. Décadas de arrendamento sob o título de “parceria agrícola” tem aprofundado a desigualdade econômica e a dependência do povo Kaingáng aos programas governamentais para famílias de baixa renda e do recebimento de cestas básicas para sua subsistência, enquanto suas terras férteis produzem toneladas de soja anualmente exportadas para a Europa e Ásia.
A bancada ruralista que predomina no poder legislativo brasileiro utiliza o arrendamento como prova de que os povos indígenas não precisam demarcar terras, já que as terras demarcadas são exploradas pelos agricultores não-indígenas:
Para os contrários às demarcações das TI, os casos de arrendamento são utilizados contra os próprios indígenas, mesmo que os argumentos sejam revestidos de um discurso de “preocupação e proteção”. Um exemplo é o discurso do Presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, Luis Carlos Heinze (PP – RS), que denunciou (26/04/2013) a existência de arrendamentos por parte de agricultores em Terras Indígenas, principalmente no norte do estado do Rio Grande do Sul; estimava que em torno de 35% das terras eram arrendadas ilegalmente. Ele alegou que essas informações foram fornecidas por agricultores, que pagariam aluguel aos índios para plantarem. Ainda disse que a FUNAI era conivente com tais situações, que faziam com que muitos índios passassem necessidades, recebendo Bolsa-Família, sendo que alguns caciques ganhavam dinheiro. Cita, inclusive, várias reservas indígenas do estado. “Milhares de índios passando necessidades, recebendo Bolsa-Família, e meia dúzia de Caciques ganhando dinheiro”, afirmou Heinze (EMILIANO, 2018, p. 220).
Entre os argumentos que se pode opor ao arrendamento está a concentração de terras e recursos financeiros, cuja gestão tem sido alvo de críticas pela desigualdade crescente e pela falta de transparência na aplicação de recursos e prestação de contas, a despeito da participação da FUNAI e do Ministério Público Federal, mediante a celebração de Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) cujo conteúdo, normalmente, é desconhecido pela comunidade e cujas cláusulas têm sido sistematicamente violadas, sem que medidas concretas sejam tomadas por parte dos órgãos públicos para corrigir os desvios de verbas que dão causa ao enriquecimento ilícito de alguns em prejuízo de comunidades inteiras.
Com dificuldades em conseguir financiamentos e/ou recursos para o plantio, os indígenas estão criando associações para facilitar as parcerias e tornar legal, perante a legislação, empresas que se encarregam de preparar a terra, plantar, fazer tratos culturais adequados e fazer a colheita. Com a venda do produto, pagam as despesas de produção, e com o excedente pagam, em porcentagem, para a Associação que posteriormente repassa os valores às famílias, conforme a sua área de terra. Mesmo assim, é notável a disparidade de quantidade de terras em hectares por parte de alguns índios: há os que possuem terras de 100 a 200 hectares, outros terras de 5 a 10 hectares, enquanto tantos outros nem mesmo têm terra para o plantio. Diante disso, além da maior fiscalização dos órgãos do governo federal, cabe revitalizar a solidariedade originária dos povos indígenas (EMILIANO, 2018, p. 221).
Os conflitos e confrontos sociais no seio das comunidades Kaingáng, cuja raiz está no arrendamento das terras indígenas, são ignorados pelas autoridades sob a alegação de que se trata de “questões internas” e de que a intervenção das autoridades federais caracterizaria violação “à livre determinação dos povos indígenas”. O genocídio praticado pela omissão governamental entre os Kaingáng assume, na contemporaneidade, um discurso de imparcialidade e respeito aos direitos dos povos indígenas, cuja tática de cooptação e divisão dos povos indígenas para facilitar os retrocessos legais promovidos pelo governo, tem sido denunciada, em nível nacional, pelas organizações dos povos indígenas em mobilizações como o Acampamento Levante pela Terra, ocorrido em Brasília em junho de 2021:
A Funai tem agido com parcialidade política e não de defensora de nossos direitos, causando revolta em nosso povo. Por décadas sofremos com a política do SPI, mas nada comparado a atuação da Funai nesse governo. Diante disso, reafirmamos nosso repúdio a nota do Conselho de caciques assinado por Gentil Belino, no qual nos chama de não índio kanhgág, somos guerreiros originários, não somos manipulados pelos latifundiários e esse governo Bolsonarista, preservamos pela vida, não negociamos a nossa mãe e menos ainda, poluindo com agrotóxico, que a nossa terra. As grandes terras indígenas do Sul do Brasil atualmente, estão sendo utilizadas para as produções agrícolas de soja e milho, sendo esses produtos transgênicos, e estas produções agrícolas são produzidas pelos caciques e a população se encontra em extrema pobreza. Nessa pandemia, muitos passaram por necessidade alimentar, solicitando aos órgãos governamentais cestas básicas para supri-las.
Sabendo-se que a terra indígena é forte na produção de grãos, criando até cooperativas agrícolas de fachada para demonstrar a sociedade envolvente, e a esse governo genocida que os indígenas devem ser considerados “cidadãos brasileiros”. Somos povos originários que lutamos pela coletividade e não pelo individualismo, como esses caciques que pensam só no valor econômico, e acabam destruindo a mãe terra e aos demais que dela retiram seus sustentos. Conclamamos aos povos originários que aqui estão se fazendo presentes, no LEVANTE PELA TERRA, para que nos apoie na luta contra esses caciques corruptos que estão provocando o extermínio da nossa cultura indígena, precisamos preservar os nossos territórios para que não contamine os nossos rios, destrua nossas matas e principalmente, a nossa vida. Nós aqui estamos sim, representando nosso povo originário que sofre e que luta por anos pelo reconhecimento de nossos territórios e a garantia de nossos direitos. (PORTAL DESACATO, 2021)
Debilitar o direito consuetudinário dos povos indígenas e destruir sua organização social mediante a cooptação de lideranças indígenas para promover a divisão e enfraquecimento de um povo indígena com vista a facilitar o processo de dominação é uma tática colonialista empregada desde a invasão dos territórios indígenas em 1500. Nos preocupa, também, que profissionais indígenas tem sido academicamente preparados, ou são cooptados após a conclusão de sua formação acadêmica para defender instituições e sistemas que oprimem os povos indígenas, em troca de vantagens individuais ou restritas a seu núcleo familiar e em prejuízo da coletividade. São os bandeirantes dos nossos dias, traidores da própria raça, cuja atuação tem a ver com o fracasso das instituições de educação formal em preparar profissionais indígenas com compromisso ético e profissional de atuação em benefício dos povos indígenas como agentes da descolonização de mentes e instituições na contemporaneidade.
O povo Kaingáng assiste a uma inversão de valores: usos, costumes e tradições, como o bem estar coletivo, são propositalmente esquecidos em prol da afirmação de individualidades que tem usurpado direitos coletivos e quando essa coletividade denuncia tais violações e busca reafirmar seus direitos são barrados por discursos institucionais de uma pretensa “neutralidade” e de não-interferência para “respeitar a autonomia e livre determinação” dos povos indígenas, que caracterizem o que a doutrina chama de teoria do impacto desproporcional ou discriminação indireta. Promulgada pelo Decreto número 10.932 de 2022 da Presidência da República , a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância estabelece em seu artigo 1º o conceito de discriminação racial indireta:
Para os efeitos desta Convenção: 1. Discriminação racial é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes. A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica. 2. Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo 1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos. (BRASIL, 2022)
No caso do arrendamento das terras indígenas, promovido pelos caciques e suas lideranças, que se beneficiam em prejuízo da maioria da população habitante das terras indígenas, à qual caberia o direito ao usufruto das terras, embora nada receba pelos milhões arrecadados pelo arrendamento dos quais não há prestação de contas publicamente disponível. A população Kaingáng permanece recebendo migalhas governamentais, como cestas básicas ocasionalmente ofertadas em vez de erradicar as práticas ecocidas promovidas pelo arrendamento ilegal das terras indígenas. A omissão governamental praticada pela FUNAI e pelo Ministério Público Federal sob a alegação, aparentemente neutral, de respeitar a autonomia e a livre determinação dos povos indígenas e suas organizações sociais têm ameaçado o equilíbrio ambiental, a segurança alimentar e a integridade física e psicológica da população Kaingáng do sul do Brasil.
A livre determinação e o autogoverno se referem a questões internas: não ao tráfico de drogas, à corrupção na gestão territorial, às milícias armadas e aos crimes cometidos em terras indígenas. A neutralidade tem sido o argumento jurídico mais recente para justificar a omissão governamental que permite a continuidade das práticas de violência, corrupção e mortes em terras e retomadas indígenas. Todos os efeitos nocivos que resultam da interferência trazido pelos fóg para os nossos territórios requerem medidas governamentais para serem solucionados de maneira democrática, participativa e transparente.
O arrendamento concretiza a estratégia contemporânea de desterritorialização dos povos indígenas. Sob o título pomposo de “parcerias agrícolas” o governo federal promove a negação do direito dos povos indígenas a conservação e uso sustentável da biodiversidade indispensável à nossa sobrevivência física e cultural. O arrendamento das terras indígenas tem promovido ilegalmente, com chancela governamental, a contaminação do solo e das águas dos territórios indígenas Kaingáng pelo uso de agrotóxicos e colocado em risco a saúde humana e a segurança alimentar do povo Kaingáng ao terceirizar o uso das terras para monoculturas transgênicas e impedir a prática da agricultura familiar de subsistência.
Juntamente com o Fág, com os bosques de araucária derrubados pela retirada ilegal de madeira promovida por grileiros, posseiros e prepostos de entes públicos tombou parte da cultura Kaingáng. O ritual do Kiki Koj era celebrado no tronco de uma araucária. Já não há abelhas para produzir mel e com ele fermentar a bebida sagrada de milho que chamamos Kyfe. Não se ouve mais o zumbido dos insetos nos nossos territórios porque os pesticidas exterminam, safra após safra, a diversidade de vida, para o plantio de sementes estéreis, que desertificam o solo, adoecem as águas e envenenam o ar que respiramos.
Nosso patrimônio cultural está diretamente ligado ao território que nutre nossa identidade como povos indígenas. Nosso território está doente e a cultura Kaingáng agoniza juntamente com a terra da qual fomos formados porque todas as coisas estão interligadas. Os conhecimentos intangíveis dos povos indígenas tais como as formas tradicionais de ensinar e aprender, nossos sistemas de organização social, a divisão de papéis por gênero, as práticas de direito consuetudinário e nossa espiritualidade tem sido sufocados e deturpados para permitir a continuidade da dominação dos povos indígenas, mediante práticas de ecocídio, genocídio e etnocídio maquiadas sob posturas “não intervencionistas” que, sob sua aparente neutralidade, matam por omissão e impactam negativamente um patrimônio intangível, de valor inestimável, que sucumbe à imposição de saberes e fazeres que violentam corpos, identidades, culturas e territórios.
Reparar para garantir direitos
Ao longo da história, o Estado brasileiro tem sistematicamente violado os direitos territoriais indígenas. O arrendamento foi, desde o SPI, a porta de entrada do esbulho e segue sendo uma das formas utilizadas para promover a desterritorialização do usufruto exclusivo dos povos indígenas às suas terras. Afirmações fartamente denunciadas em documentação oficial produzida pelo próprio Estado brasileiro, que retratam sua ação, omissão e participação na espoliação dos territórios indígenas. O Estado brasileiro tem o dever de reparar e não repetir suas condutas lesivas ao direito territorial indígena, que além de promover o esbulho das terras, tais ações e omissões incidem com graves consequências sobre a cultura dos povos indígenas, a harmonia de suas comunidades e sua própria sobrevivência, gerando um ambiente de conflito e violência.
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PORTAL DESACATO, 2021, 18 Junho, Nota das lideranças indígenas do Oeste de Santa Catarina sobre manifestação do presidente do Conselho de Caciques. Desacato.info. Disponível em: http://desacato.info/nota-das-liderancas-indigenas-do-oeste-de-santa-catarina-sobre-manifestacao-do-presidente-do-conselho-de-caciques/. Visualizado em 18 jun. 2023.
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RICARDO, Fany, KLEIN Tatiane, SANTOS, Tiago Moreira dos (Orgs.). Povos Indígenas do Brasil. 1ed. São Paulo: ISA. Instituto Socioambiental, 2023.
SALES, Lucia Fernanda. Ação indenizatória 5000850-68.2021.4.04.7118-RS. 1ª Vara da Justiça Federal. Carazinho. RS: 2022.
Coleção Indígenas pela Terra & Vida
POVO KAINGÁNG PELA TERRA E PELA VIDA
ESPECIAIS
Armazém Memória
Pesquisa e redação: Lucia Fernanda Jófej Kaingáng e Susana Fakój Kaingáng, sob orientação de Marcelo Zelic
Diagramação: Helena Zelic
Página realizada para o projeto “Illegal Leasing of Indigenous Lands in Brazil”, em parceria do Armazém Memória com o Instituto de Políticas Relacionais e o Instituto Indígena Brasileiro para Propriedade Intelectual (Inbrapi) e apoio do FPSE International Solidarity Fund.