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Por Antonio Carlos Bigonha

A história se repete. Primeiro como tragédia, depois como farsa. A frase de Karl Marx não poderia ser mais apropriada para definir o processo genocida de ocupação do nosso continente desde a conquista europeia no Século XVI. E para caracterizar a memória complacente do Estado, tanto português quanto brasileiro, ao longo desses 5 séculos.

A obra “Respeito ou Repetição: a História que não se quer reviver” foi encomendada pela 6a. Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal ao Armazém Memória, sob a curadoria do pesquisador Marcelo Zelic. A exposição foi inaugurada no Memorial Pedro Jorge da Procuradoria-Geral República e integrou as atividades do “Abril Indígena” do ano de 2019. Estávamos, à época, a pouco mais de três meses do início do mandato de um novo presidente da República que, desde o processo eleitoral, comprometera-se com setores empresariais e conservadores da sociedade brasileira a não respeitar o Estatuto Constitucional Indígena e a não demarcar um centímetro de território tradicional.

“Respeito ou Repetição” tem por base o Relatório Figueiredo, resgatado pela Comissão da Verdade entre os arquivos da Ditadura Militar que vigorou no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980. Documento produzido pelos próprios militares a partir da investigação das atrocidades cometidas pelo Estado brasileiro contra os indígenas ao longo do Século XX, os horrores registrados no inquérito resultaram na extinção do SPI (Serviço de Proteção aos Índios) e na criação da Funai. Com o objetivo de integrar os indígenas ao ciclo econômico rural e urbano, o SPI, nos 50 anos em que operou, promoveu um autêntico genocídio: na década de 1980, com a reabertura democrática, esses povos contavam com pouco mais de 200 mil indivíduos, segundo dados do CIMI.

A grande novidade desde a ocupação europeia do continente seria a Assembleia Nacional Constituinte de 1987, contexto no qual as lideranças indígenas teriam destacada participação e que resultaria na inclusão do Capítulo Indígena no Título da Ordem Social da Constituição de 1988. Um gesto a um só tempo político, jurídico e simbólico, pelo resgate e reconhecimento de seus costumes e tradições, inclusive quanto à posse e o usufruto exclusivo de seus territórios. Passados 40 anos de redemocratização, a população indígena brasileira já supera 1 milhão de indivíduos.

A política adotada pelo atual governo e sua indiferença ao passado pretendem novamente “integrar” o indígena à sociedade brasileira, transformando-o majoritariamente em um parceiro agrícola. Esta é a fala explícita do presidente da República e do presidente da Funai, em obsequioso respeito aos compromissos de campanha assumidos com a agenda empresarial agropastoril e com a expansão da fronteira agrícola. Essas autoridades públicas sucedem, nesse sentido, as mesmas promessas feitas aos setores empresariais pelo presidente da República Venceslau Brás, que governava o País há exatos 100 anos, quando foi criado o malsinado SPI e período no qual o Brasil foi acometido pela pandemia da Gripe Espanhola.

Estamos em junho de 2020 e a história se repete como tragédia.

Em plena pandemia do vírus Covid19, a Funai não dispõe sequer de um plano emergencial articulado para a proteção dos povos indígenas e para impedir que o vírus avance em seus territórios, embora exaustivamente instada a fazê-lo. Contraditoriamente, baixa atos e publica normas, como a IN009, que dificultam a proteção dos territórios tradicionais, colocando a Autarquia Indigenista ao lado dos interesses do agronegócio e contra as reivindicações indígenas que deveria acolher por imperativo legal e constitucional. O Palácio do Planalto envia ao Parlamento Federal projeto de lei para a legalização do garimpo e da mineração em terras indígenas, expressamente vedados pela Constituição. A invasão aos seus territórios avança sob o olhar indiferente do Ministério da Justiça e das forças de segurança. Durante a pandemia há generalizado cerceamento dos direitos constitucionais dos povos indígenas. O vírus se alastra rapidamente e a APIB, em 6 de junho, computa 2.390 contaminados, 236 mortos em 93 povos atingidos. (http://quarentenaindigena.info/casos-indigenas)

A reedição desta exposição, agora em versão digital, e sua publicação em plena pandemia Covid19, permitirá ao público em geral aferir o processo genocida em marcha no Brasil, neste exato momento, contra as populações indígenas, com a retomada da equivocada política integracionista adotada pelo Estado há um século. E nos conduz, na espiral hermenêutica, à mesma indagação de abril de 2019: respeito ou repetição? O genocídio indígena é uma história que se quer repetir?

Antonio Calos Alpino Bigonha é Subprocurador-Geral da República e Coordenador da 6a. CCR/MPF (biênio 2018/2020)

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