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“3 – Instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, exclusiva para o estudo das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, visando aprofundar os casos não detalhados no presente estudo”. [Recomendação Reparadora] 

“6 – Criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão amplas das graves violações de direitos humanos cometidas contra povos indígenas, por órgãos públicos e privados de apoio à pesquisa ou difusão cultural e educativa, incluindo-se investigações acadêmicas e obras de caráter cultural, como documentários, livros etc”. [Recomendação Pedagógica] 

“12 – Regularização e desintrusão das terras indígenas como a mais fundamental forma de reparação coletiva pelas graves violações sofridas pelos povos indígenas no período investigado pela CNV, sobretudo considerando-se os casos de esbulho e subtração territorial aqui relatados, assim como o determinado na Constituição de 1988”. [Recomendação Estrutural e mecanismo de não-repetição] 

Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade – Tomo II – Capítulo 5 – Graves violações de direitos humanos dos povos indígenas – Recomendações Indígenas.

 

“… …, o Estado Brasileiro, as suas elites e sucessivos governantes, sempre nos trataram como empecilhos a seus projetos de desenvolvimento, de ocupação e de morte. Daí pode ser compreendido o porquê do Estado nunca ter se estruturado para cumprir e tornar realidade os preceitos constitucionais”.

Declaração do Abril Indígena – Acampamento Terra Livre 2021.

Por Marcelo Zelic

A violência contra os Povos Indígenas está exacerbada no Brasil, mais intensa e grave. Ataques coordenados acontecem em todas as esferas do Estado brasileiro e ataques não coordenados, fruto de ações, estímulos e omissões por parte das autoridades e da FUNAI, têm ocorrido com diversos tipos de agressões e violências em seus territórios e aldeias, promovendo graves violações de direitos humanos contra os Povos Indígenas por todo território nacional. 

A emergência indígena declarada em 2019 pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), é um chamado à ação em defesa de valores caros à vida; como a diversidade dos modos de existir em sociedade e o uso da terra e meio ambiente, o respeito aos limites territoriais de áreas de proteção ambiental e terras indígenas, à pessoa humana e demais formas de vida, às culturas e crenças diversas e aos direitos afirmados em 1988 em seus artigos 5, 231 e 232 de nossa Constituição.

O governo Bolsonaro promove o genocídio indígena no Brasil ao resgatar em sua pratica, no exercício do poder, visões de mundo e desenvolvimento do período da ditadura militar, que foram abolidos pela Constituição de 1988, quando afastou por um conjunto de leis, a tutela, a política integracionista e a imposição de projetos de desenvolvimento em territórios indígenas como políticas do Estado em sua relação com os povos indígenas.

É um governo de destruição. Fustiga desde seu primeiro dia, com atos e palavras, atuando contra os direitos indígenas e a vivência pluriétnica e democrática em sociedade, promovendo e estimulando uma relação desrespeitosa, agressiva e dolorosa para com os 305 povos existentes no país, impondo mais um ciclo de repetição do tempo do desassossego, do tempo da violência explícita, onde a estigmatização, a invisibilização da palavra e desejo indígena e reforço do preconceito junto à população, são ferramentas do Estado para viabilizar a ferro e a fogo o desenvolvimento que deseja, agredindo os povos indígenas, a sociedade brasileira e a Constituição. 

Em 2016, através de um golpe que destituiu a presidente eleita Dilma Rousseff, um novo ciclo de desenvolvimento predatório passou a dar os rumos e o ritmo da espoliação das riquezas brasileiras e os povos indígenas e suas terras estão no olho desse furacão. Vivem em terras cobiçadas pelos setores que deram e se beneficiam do golpe jurídico-parlamentar-midiático aplicado.

O governo Bolsonaro trata os povos indígenas como aqueles que atrapalham esse “desenvolvimento”, como fizeram os militares em seus governos entre 1964-1985. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) bem demonstrou em seu relatório final, a violência que esse tipo de “desenvolvimento” provoca e as graves violações de direitos humanos cometidas contra os povos indígenas no período. Hoje, como na ditadura militar, que foi condenada por genocídio indígena pelo Tribunal Russell em 1980, o presidente do Brasil e o governo brasileiro têm de responder em tribunal penal e organismos internacionais sobre o genocídio indígena em curso, que executam em nosso país.

Sem pudor e com pressa, destroem pelo fogo e com a caneta a partir dos cargos que ocupam. Destroem políticas estruturadas por décadas, desregulamentam, embaralham o direito para judicializar suas ilegalidades em busca de tempo, tempo este para a consolidação de invasões de territórios e negociatas de fraudes cartoriais de posse e venda de terras indígenas e públicas ou a legalização via legislativo da grilagem, bem como a imposição de projetos desenvolvimentistas nestas terras. 

Queimadas no Pantanal e na Amazônia brasileira devastam o meio ambiente e são os símbolos da invasão que ocorre sobre todos os biomas do Brasil no governo Bolsonaro, atingindo o meio ambiente, as terras imemoriais dos povos indígenas e de outras comunidades tradicionais. Se essas terras são demarcadas ou estão em disputa judicial ou processo de recomenhecimento, não importa para o governo Bolsonaro, é necessário entregá-las para a mineração, o garimpo, o agronegócio, para o comércio ilegal de madeira e a especulação imobiliária até o fim do mandato em 2022, como tem feito com as empresas estatais, patrimônio estratégico do povo brasileiro, privatizadas em crime de lesa-pátria.

Leia a íntegra da entrevista - Jornal Porantim nº 9, julho de 1979

A emergência indígena é um chamado aos direitos humanos, para que atuem e se organizem, criando redes e articulações em defesa da existência indígena no Brasil, de seus direitos territoriais, culturais e meio ambiente, pois como disse Dom Tomás Balduíno, presidente do Conselho Indigenista Missionário em uma entrevista ao jornal Porantim, em 1979, “não se deve silenciar nenhum crime contra o índio”. 

Essas suas palavras proferidas ainda durante a ditadura militar, retornam nos dias de hoje e vão de encontro ao chamado de emergência indígena feito pela APIB, para que a repetição da violência de Estado promovida pelo governo Bolsonaro cesse e não tenhamos daqui alguns anos ou décadas, estudos que apontem como a CNV mostrou depois de quase 50 anos, que os povos indígenas tiveram em somente 10 povos estudados, 20 vezes mais mortos e desaparecidos entre seus membros no período estudado de 1946-1988, violência intensificada durante a ditadura a partir de 1964, chegando-se a um número subestimado de 8.350 vidas indígenas vítimas do processo de desenvolvimento realizado pelos militares, cujas práticas retornam como base da ação do Estado neste governo, acusado de genocída.

A Comissão Nacional da Verdade ao publicar seu relatório final em dezembro de 2014, deixou como legado e dívida ao Estado brasileiro, e também à sociedade nacional, 13 recomendações a serem cumpridas para promover mecanismos de respeito aos povos indígenas e mudar a relação de violência contra seus membros e seus territórios, promovida a cada ciclo de desenvolvimento no Brasil. Se cumpridas, apontam caminhos que fortalecem a democracia, a efetivação da justiça de transição para os povos indígenas e o Nunca Mais para toda a sociedade.

São 13 recomendações que atacam aspectos importantes que sustentam os mecanismos de apartheid imposto aos povos indígenas e seus direitos, visando o esbulho de suas terras. Dividem-se em recomendações pedagógicas, estruturais e reparadoras de direitos, porém desde sua publicação, jamais foram reconhecidas pelo Estado brasileiro e nunca foram desenvolvidas políticas para sua implementação. 

Pelo contrário, vivemos um período de retirada de direitos contra os indígenas por parte de autoridades do Estado brasileiro, que atuam repetindo ações que violentam a cidadania indígena, sua cultura, território, direitos e desejos. Repete-se com a política de “passar a boiada” do Governo Bolsonaro, o mesmo uso de doenças, surtos e epidemias nas aldeias e comunidades para avançar contra o território indígena e tomar suas terras. Segundo dados publicados pelo Greenpeace, em 2020 durante a pandemia do COVID 19 o desmatamento na Amazônia em terras indígenas aumentou 59%, como resultado de uma política indigenista genocida como vem denunciando a APIB.

Desmatamento em terras indígenas aumenta 59% na pandemia.

O Nunca Mais é uma realidade distante da vida e do cotidiano dos povos indígenas, nem em ciclos democráticos chegaram perto deste conceito, sofrem hoje ameaças e atentados à suas vidas, assassinatos, espancamentos, incêndios criminosos de moradias e casas de reza em suas aldeias, repressão policial violenta em suas manifestações, perseguição política e judicial de suas lideranças, vivem em luta para garantir suas existências, como os demais segmentos da sociedade que sofrem com as repetidas violências de Estado que ocorrem no Brasil, com a diferença que o foco da violência contra a população indígena não é a contenção social e sim a expropriação de seus terriitórios. 

A violência estrutural e estruturada do Estado brasileiro contra a pessoa do indígena, seus direitos constitucionais, cultura e territórios tradicionais, segue com caráter permanente e agressivo por parte de setores da sociedade que hoje comandam o país. Por isso a CNV apontou a necessidade de campanhas nacionais de esclarecimento à população sobre os direitos indígenas e a importância de uma relação respeitosa com esses povos, que são pilares do combate ao desmatamento e ao aquecimento global. Contra a invisibilidade determinou que a inclusão das graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas se faça presente no currículo oficial da rede escolar de ensino e a criação de fundos específicos de fomento à pesquisa e difusão cultural e educativa, incluindo investigações acadêmicas sobre violações não atingidas pelos estudos da CNV.

Solicitou a mudança ou criação de legislação para conceder reparações coletivas aos povos indígenas, vítimas do desenvolvimentismo do Estado brasileiro, a abertura de processos judiciais para fins de reparação e a criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade para dar continuidade aos trabalhos iniciados em novembro de  2012 e a efetivação da justiça de transição para os povos indígenas.

Apontou ainda que o mais importante mecanismo de não-repetição da violência contra os povos indígenas é a demarcação de suas terras, desintrusão de invasores e a recuperação ambiental das áreas devastadas, como forma de ensinar à sociedade e aos agentes do Estado brasileiro o respeito ao território, aos direitos e à cultura desses povos originários de nosso país.

A resposta dos setores que tomaram o Estado brasileiro pelo golpe de 2016 e a farsa eleitoral de 2018, vai além do não reconhecimento da necessidade de se mudar condutas e políticas públicas no trato com os povos indígenas, levando-se em conta as recomendações da Comissão Nacional da Verdade, atuam frontalmente contra elas, buscam e disseminam a repetição da violência, aplicando os mesmos métodos já usados naqueles tristes tempos de ditadura militar.

Assim, à sociedade cabe promover junto com os povos indígenas a judicialização das reparações para que haja efetivação da justiça de transição. É preciso assumirmos a tarefa de criação da Comissão Nacional Indígena da Verdade e interpelar judicialmente setores do Estado para o cumprimento das recomendações, tanto no executivo como no legislativo e no judiciário.

É fundamental trabalharmos a busca da verdade, povo a povo, registrando as violências sofridas e ocultas até hoje em função de um desenvolvimento genocida e desrespeitoso à vida, mas buscar a verdade não só para contar as histórias de violência que existem em nosso país, mas sim, buscar a verdade para reparar cada caso estudado. Buscar a verdade para compreender a dinâmica da ação violenta do Estado, seus mecanismos de opressão, ocultamento da violência e impunidade, para a partir daí construir mecanismos de não-repetição.

Reparar os povos indígenas e promover a construção de mecanismos de não-repetição são os pilares que devem nortear as ações de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, mas é preciso também que os casos estudados possam servir para apontar em nosso presente as repetições de práticas e condutas violentas de agentes do atual governo, fundamentando, em um capítulo específico, pedidos de responsabilização criminal pelas ações que têm desenvolvido durante a gestão Bolsonaro, para que seus crimes não fiquem impunes, como os de períodos anteriores.

Atacar os povos indígenas e seus direitos são graves ataques aos pilares da democracia, a superação do aquecimento global e mudanças climáticas que já se impõem por todo o planeta. Que a sociedade, as universidades e os direitos humanos se unam aos povos indígenas para a construção da Comissão Nacional Indígena da Verdade, a busca de efetivação das recomendações da CNV e da justiça de transição para os povos indígenas, para que quebremos esse ciclo permanente de violência e impunidade. É preciso dar um basta a esta violência continuada em nosso país.

Sangue indígena, nenhuma gota a mais. Demarcar é reparar. 

Marcelo Zelic é membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória.

PELA CRIAÇÃO DA COMISSÃO NACIONAL INDÍGENA DA VERDADE

com rede solidária de pesquisa e trabalho colaborativo

campanha de 2012 do Armazém Memória e Toda Ópera por verdade, memória, justiça e reparação para os Guarani-Kaiowá e demais povos indígenas.

Memória Interétnica: Centro de Referência VIrtual Indígena

acervo