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O homem que esteve por traz do antológico CD que estreia amanhã a Discoteca Estadão tem memórias impagáveis

 

por Lauro Lisboa Garcia, O Estado de S.Paulo

Era apenas para ser mais uma coletânea de novos artistas, nos moldes de muitos discos americanos, mas Tropicália – Ou Panis et Circencis (1968) virou do avesso o conceito de álbum coletivo e, mais ainda, o jeito de se produzir música popular no Brasil. Reunião de talentos em erupção – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Mutantes, Tom Zé, Gal Costa, o poeta Torquato Neto, mais a convidada Nara Leão -, regidos por um arranjador (Rogério Duprat) e um produtor (Manoel Barenbein) visionários, o disco continua, 42 anos depois a despertar admiração e entusiasmo, influenciando legiões de novos artistas. “É como se tivesse sido feito ontem”, diz o Barenbein.

Nada melhor do que essa bíblia moderna da canção brasileira para inaugurar a Coleção Grande Discoteca Brasileira, que estará à venda aos domingos por R$ 14,90 com o Estadão, a partir de amanhã, até o dia 3 de abril de 2011.

Outros álbuns impecáveis dos 25 títulos da coleção – como Expresso 2222 (Gilberto Gil), A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (Mutantes), Acabou Chorare (Novos Baianos), Fruto Proibido (Rita Lee), Secos & Molhados (o primeiro do grupo), Pérola Negra (Luiz Melodia), Cantar (Gal Costa) – são consequências dele.

“As pessoas se interessam como nunca em ouvir pra discutir, pra saber o que foi feito naquele disco”, diz Barenbein. Ele é o grande nome por trás dos discos tropicalistas. No mesmo ano de Tropicália ele produziu os primeiros solos de Caetano Veloso, Gal Costa, o dos Mutantes, o segundo de Gil, o álbum tropicalista de Nara Leão e A Banda Tropicalista do Duprat. Seu nome, no entanto está grafado errado nesses e em outros discos por um motivo risível: “Tinha um revisor de textos na gravadora, que não admitia o ‘n’ antes do ‘b’. Então ele corrigia meu sobrenome”, diverte-se o produtor.

Sua reputação já vinha dos ótimos discos dos festivais da TV Record, onde trabalha hoje como produtor musical. Como diretor da Philips (hoje Universal) em São Paulo, seu primeiro feito com Caetano e Gil foi na ocasião em que gravou as históricas Alegria, Alegria e Domingo no Parque, do festival de 1967. “Já conhecia os baianos do Teatro de Arena. Quando a gente sentou para conversar sobre como seriam as gravações, eles começaram a falar em guitarra elétrica, grupo de rock. Eu vinha da RGE, onde trabalhava de um lado com Chico Buarque e outro com Erasmo Carlos. Depois de Beatles, juntar a MPB e o rock era o que eu mais queria, meu sonho. Quando eles vieram com essa história, abracei a ideia no primeiro instante”, lembra.

Na época, obviamente, não havia a tecnologia de hoje, então eles não podiam se dar o luxo de refazer algo que saísse errado. “Se a gente não sabia exatamente o que queria não ia pro estúdio. Então, quando fomos gravar o Tropicália, já estava tudo pronto, determinado, até a ordem das faixas, quem ia cantar qual música, os sons dos canhões ligando duas faixas. Isso já estava pré-concebido. Não tinha surpresas. A surpresa era o final da gravação.”

Cooperativa. Apesar da divisão das faixas no formato de compilação, ele considera Tropicália um trabalho de grupo. O disco ficou com a marca de Rogério Duprat, mas ele defende: “Aquilo era um grupo fechado. As pessoas se fecharam em torno de um projeto e acabou. Não é que Rogério era mais ou a Nara era menos porque só fez uma faixa. Virou uma espécie de cooperativa onde todo mundo tem uma fatia igual.”

A primeira sessão seria com Gilberto Gil e Os Mutantes (Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e Rita Lee) num domingo. “Mesmo gripado e com febre Arnaldo foi pro estúdio (o profissionalismo deles era uma coisa muito legal), mas não tinha condições de trabalhar, então a gravação foi cancelada”, lembra. Barenbein – que sugeriu o título Tropicália depois de ver a obra de Hélio Oiticica de mesmo nome – acredita que foi na noite anterior que a ideia de passar de uma simples coletânea para algo original foi forjada.

Há de se considerar também o tanto de “loucura” que envolvia suas ousadias. “Estávamos no meio de uma ditadura, tínhamos um problema sério, as letras todas tinham de ser autorizadas pela censura. Quando ouvi as notas do Hino Nacional em Parque Industrial, a primeira reação foi dizer peraí, Rogério. Mas depois pensei: não estou denegrindo, estou fazendo uma espécie de ornamento com uma coisa que toca a todos nós para marcar o que a gente está dizendo.”

Por ter trabalhado com cinema, Rogério Duprat escrevia arranjos com uma visão cinematográfica. E o arranjo de Coração Materno (Vicente Celestino) é para Barenbein um dos mais incríveis que já ouviu. “A letra da música já conta uma história que nos dias de hoje daria um videoclipe detalhado. Ele conseguiu fazer com que a música não ficasse brega, mas poética. A interpretação de Caetano é perfeita e a orquestração de Rogério deu um charme, colocando aquilo com uma poesia mesmo, não como uma tragédia.”

Outro ponto alto do disco para ele é Panis et Circensis “pelo ineditismo da gravação, de brincar com a fita, fazer a fita parar, de colocar a sonoplastia das pessoas na sala de jantar. Não me lembro de nenhuma sonoplastia nesse espírito e de ruído usado em disco, até então.” Uma vez jogado na praça, choveu polêmicas, mas os puristas que partiram para o ataque acabaram se rendendo.