Entre 2003 e 2015, 742 índios foram assassinatos, média de 57 por ano.
Vitor estava no colo da mãe na rodoviária de Imbituba, Santa Catarina, juntamente com o pai e os dois irmãos. A família saíra da aldeia onde viviam em Chapecó, no oeste do Estado, para vender artesanato. Um homem então se aproximou, acariciou o rosto da criança e a degolou com um golpe de estilete no pescoço.
A morte do pequeno Kaingang, de dois anos, em 31 de dezembro de 2015, foi a 55ª que o Brasil registrou no ano passado. Foi mais um típico ano de violência contra uma população que vem sendo massacrada no País nos últimos anos.
Entre 2003 e 2015, 742 indígenas foram assassinados — média de 57 por ano, ou um homicídio a cada seis dias.
Os dados fazem parte do mais recente levantamento sobre a violência contra indígenas no Brasil. A plataforma CACI (Cartografia dos Ataques Contra Indígenas, que pode ser acessada mais abaixo) foi lançada nesta semana, em São Paulo, com um mapa dos homicídios entre 1985 e 2015.
Desenvolvido pela Fundação Rosa Luxemburgo, InfoAmazonia e Armazem Memória, o mapa é baseado nos relatórios anuais do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT).
É possível identificar o local das mortes, saber detalhes sobre cada uma delas e cruzar as informações com as áreas de desmatamento, a localização das usinas hidrelétricas e as terras indígenas demarcadas.
“Os dados evidenciam como ainda está em curso uma prática muito danosa de extermínio de populações indígenas. Temos há séculos políticas de extermínio e genocídio, não é uma coisa do passado no Brasil”, afirma Daniel Santini, um dos coordenadores da Fundação Rosa Luxemburgo e um dos responsáveis pelo CACI.
Para Santini, os casos estão relacionados “direta ou indiretamente” à demarcação de terras, seja em conflitos diretos por território, ou então confinando populações em espaços reduzidos.
— Quando se confinam populações grandes em áreas muito reduzidas, se desintegra todo o convívio social. Eles são obrigados a ficar restritos num território apertado, e conflitos entre diferentes famílias são agravados.
Mato Grosso do Sul
Os dados revelam um cenário drástico no Mato Grosso do Sul. Com 9% da população total indígena do País, o Estado concentra mais da metade das mortes: 400 dos 742 assassinatos registrados entre 2003 e 2015, ou 54% do total.
“Quando você vê a concentração de assassinato no Mato Grosso do Sul, fica muito claro uma crise humanitária em curso”, afirma Santini.
O CACI — que significa “dor” no idioma guarani — traz ainda um dossiê sobre a situação no Estado, assinado pelo pesquisador Marcelo Zelic, coordenador do Armazém Memória e membro do Grupo de Trabalho Indígena durante a Comissão Nacional da Verdade, que apurou crimes cometidos durante a Ditadura Civil-Militar (1964-85).
No Mato Grosso do Sul vivem 73.295 indígenas, a segunda maior população indígena do Brasil, atrás apenas do Amazonas, segundo dados do Censo de 2010, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
“O Estado possui, no entanto, a pior distribuição de terras indígenas, ficando os povos em regime de confinamento em diminutas áreas denominadas reservas. São 6.777 km² de território, representando apenas 1,89% do território total do Mato Grosso do Sul, que é de 358.158,7 km². A densidade populacional é de 10,18 hab/km², 40% maior que a população não-indígena no Estado”, escreve Zelic.
Flávio Vicente Machado, missionário do Cimi-MS, lembra que o massacre atinge sobretudo a população Guarani-Kaiowá, “segunda maior do país, com 48 mil pessoas, e que atualmente possui a pior situação de terras demarcadas no país”, diz.
“Para nós, esse é o fator principal para a grande quantidade de assassinatos. Os Guarani-Kaiowá foram historicamente deslocados de suas aldeias e forçadamente colocados em oito reservas. Isso gerou uma grande concentração numa pequena área que não oferece condições para que eles reproduzam seu modelo de vida”, afirma Machado.
Ele diz que os homicídios acontecem “justamente nas reservas que hoje são verdadeiros confinamentos humanos”. Em 2009, um relatório do MPF (Ministério Público Federal) afirmou que “a situação por eles vivenciada é análoga à de um campo de refugiados. É como se fossem estrangeiros no seu próprio país”.
Em razão disso, grupos indígenas passaram a tentar o retorno para suas antigas terras, o que vem gerando conflitos por território com fazendeiros locais.
Em agosto passado, a Polícia Federal prendeu 18 fazendeiros suspeitos de envolvimento em ataque a indígenas em Caarapó (MS). O MPF obteve a prisão preventiva de proprietários rurais que teriam participado da retirada violenta de indígenas da Fazendo Yvu.
O ataque acontecera em junho, após índios Guarani-Kaiowá da comunidade Tey Kuê ocuparem a fazenda, que faz parte de uma área atualmente em processo de demarcação pelo governo federal. Um indígena foi morto e outros nove, feridos, pelos fazendeiros e seus capangas.
Procurados na tarde da última sexta-feira (14), a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o governo do Mato Grosso do Sul não atenderam aos pedidos de entrevista até a publicação desta reportagem.